O texto é do Lucas Machado, médico e piloto de parapente, que começou no vôo livre desde a época que só a asa delta. Já voou mais de 5.000 horas até hoje. Há anos que só voa parapente:
Sempre que ocorre um acidente com alguém próximo passo por momentos de introspecção. Desta vez me peguei pensando na importância que damos às nossas asas e como nos relacionamos com elas. Como somos diferentes e únicos, lidamos de modo pessoal com esse aparato mágico, que nos transmuta em seres alados.
Do mesmo modo que às vezes somos negligentes com aqueles que amamos, podemos também estar sendo desleixados com nossa estimada vela, pela qual juramos amor eterno. Assim como nos dedicamos de corpo e alma a relacionamentos afetivos, devemos nos empenhar em entender e cuidar dessa frágil e susceptível estrutura. Não é necessário ser nenhum maníaco compulsivo-obsessivo como eu. Mas há que se entender as sutilezas, as vocações, as qualidades, os defeitos, o carácter, a índole, a procedência, o comportamento, enfim, tudo o que pudermos saber sobre este quase ser vivo com quem convivemos tão intimamente, como se fosse uma extensão do nosso próprio corpo ou um órgão do nosso sistema.
E é mesmo um órgão. Formado por tramas de diferentes tecidos, costurados de modo tridimensional, milimetricamente projetado. Nos conectamos a ele através de linhas cuidadosamente trançadas, da espessura de linhas de pesca. Esta delicada estrutura, que é capaz de suportar o peso de um carro popular e nos conduzir graciosamente por entre as nuvens, merece toda a nossa admiração, respeito e cuidado, pois ainda assim trata-se de panos e linhas.
Somos nós os responsáveis por nossas asas. Nós é que devemos zelar para que elas se mantenham jovens e saudáveis, prevenindo seu envelhecimento e remediando prontamente seus infortúnios. Agentes nocivos devem ser evitados, como o calor excessivo, os raios ultravioleta, a compressão, a sujeira, a abrasividade, os insetos e a umidade.
Estruturas de nylon semi-flexíveis comumente utilizadas nos bordos de ataque, como talas ou rigdfoils, deformam-se quando aquecidas a 60˚c. Deixadas dentro de carros ao sol, elas tomam a forma com que foram guardadas na mochila e assim tendem a permanecer quando abertas, comprometendo a eficiência aerodinâmica. Depois que passei a usar um sensor de calor na mochila, tenho me surpreendido com a rapidez com que se alcança essa temperatura dentro do porta-malas, depois que se estaciona na rampa, por exemplo.
Deixar a vela aberta na rampa sob o sol é como deixar a noiva abandonada no altar. Inaceitável! Além de derreter as talas com o calor, raios UV deterioram rapidamente o tecido, deixando-o poroso e desbotado. A porosidade diminui tanto a eficiência do perfil aerodinâmico, como a manutenção da pressão interna, responsável por manter a vela aberta. Durante a decolagem, velas porosas e/ou com o perfil deformado apresentam uma inflagem e subida mais lenta e difícil, além de uma maior susceptibilidade as colapsos, com reaberturas mais vagarosas, e uma maior velocidade de estol.
As recomendações são: retirar a mochila do carro assim que chegar na rampa e deixa-la na sombra até a hora de voar. Deixar para abri-la completamente só depois que arrumar todo o restante do equipamento, inclusive já tendo se agasalhado e equipado. Depois de checadas as linhas, recolher o velame e se encaminhar para a decolagem e decolar o mais célere possível, deixando que o sol a castigue apenas em voo. Ao pousar, procurar por uma sombra para dobra-la. Se não houver, faze-lo o mais rápido que puder, cuidando para que a mochila não fique exposta diretamente ao sol, lembrando de não deixa-la abandonada no carro.
Poucos pilotos se importam em não submeter seus parapentes a grandes pressões. É comum ver alguns sentados sobre seus equipamentos ou empilhando uns sobre os outros apressadamente na caçamba do resgate. Vale lembrar que nossos paraquedas de emergência também estão lá e que é melhor manter seus gomos o mais descompactado possível. Deixar a selete sobre a vela grosseiramente recolhida também parece ser a norma. Sem contar aquela “jogada” de vela sobre a caçamba, aberta mesmo, e pular em cima para que o vento não a leve embora durante o deslocamento. Outras agressões são apertar demais as cintas de compressão e deixar a vela por longos períodos apertada na mochila. Os vincos formados no tecido pela compressão excessiva deixa marcas indeléveis na vela, criando áreas onde a porosidade é maior devido a um alongamento das fibras no local, além de também deformar o perfil causado pelo amassamento das talas. Mais uma vez, a consequência é uma perda de eficiência do perfil aerodinâmico.
Como prevenção, zelo para que minha vela seja correta e cuidadosamente dobrada e condicionada dentro da mochila, cuido para que o capacete não pressione diretamente o velame colocando agasalhos entre eles, evito que seja submetida a cargas de pressão desnecessárias e, chegando em casa, tiro a vela da mochila e a deixo desdobrada dentro do tubebag.
Sujeira deve ser evitada a todo custo. A poeira entre as tramas do tecido tendem a permanecer lá, sendo sua remoção trabalhosa e, frequentemente, mal sucedida. O resultado é um maior atrito entre os tecidos, provocando abrasões que deterioram o tecido rapidamente, deixando-o poroso, com as consequências já mencionadas acima.
A maior causa de abrasão é arrastar a vela no chão, seja na hora de abrir, de fechar ou de decolar. Dói o coração ver pilotos abrindo suas velas pegando pelas pontas e arrastando toda a envergadura pelo chão afora. Não custa nada, ao pegar a ponta da vela, levantar as mãos sobre a cabeça, para que o velame fique o mais longe do chão possível ao ser aberta. Descer pela decolagem com a vela pré inflada no ventão, puxando-a pelos freios, chega a dar gastura. Colocar a vela na rampa em “roseta” para depois dar uma pré inflada também é de doer, já que o velame, ao abrir, vai se esfregar no chão e, pior, com muita pressão. Melhor, nestas ocasiões, é puxar as pontas para baixo, formando um “V” bem agudo e, só depois, dar uma inflada.
Insetos furam o tecido e secretam substâncias quimicamente corrosivas, quando deixados dentro do velame. Tecidos nas cores amarelo e verde claro atraem mais insetos. Periodicamente eu abro a vela em casa e retiro todas as folhas e insetos que porventura tenham se alojado dentro da vela. Provocar um front também resolve ao cuspir tudo que estiver dentro. Eventualmente passo, cuidadosamente, um pano macio e levemente úmido nas áreas mais sujas, me certificando que esteja bem seco antes de dobrar e guardar.
Por fim, um dos maiores inimigos de nossas penas é a umidade. Pássaros secretam e espalham por todas as penas uma substância oleosa que repele a água por uma boa razão. Sugiro, do mesmo modo, manter nossas asas longe da umidade. Sabidamente, a umidade deixa o tecido mais poroso e encurta as linhas sujeitas a menos pressão durante o voo, quais sejam, as linhas dos tirantes traseiros. Além de uma chuva, nossas velas podem ficar úmidas voando dentro da nuvem, pousando sobre vegetação no fim do dia, voando frequentemente no litoral, contaminando com agasalhos suados, lastros e/ou camelback vazando, condicionadas em locais pouco arejados, além do óbvio pouso n’água durante SIV’s.
Linhas úmidas tendem a encolher, pela contração da trama que forma a capa. Linhas dos tirantes traseiros, por sofrerem menos carga, são as que encolhem, deixando a vela mais estolada. Velas com linhas encurtadas estão fora da trimagem projetada e, portanto, fora da homologação. Uma redução no comprimento das linhas de trás aumenta a cambagem do perfil, resultando em diminuição da taxa de queda (sobe mais na térmica), diminuição da taxa de planeio (pior L/D) e das velocidades de mão alta e acelerada, além de ficar mais suscetível a colapsos e aumentar a velocidade de estol.
Ao deixar minha vela fora da mochila quando armazenada, além de contribuir para que não fique comprimida, também ajuda a deixa-la ventilada e seca.
Velas maltratadas ao longo do tempo são facilmente reconhecidas pela perda de sua eficiência aerodinâmica. Em solo, ao se examinar as células centrais, nota-se que estão mais sujas e o tecido está mais macio do que o das células vizinhas. Em voo, frequentemente apresentam vincos, tanto no sentido da corda (condicionamento inadequado), quanto no sentido da envergadura (linhas encurtadas). Comportam-se mais lentamente em todas as fases do voo, da inflagem às tiradas, passando pelas enroscadas e pouso.
Todos os mal tratos tem uma perigosa consequência em comum: o aumento na velocidade de estol. Assim, judiamos de nossas asas por um longo período até que ela, cansada, se recusa a seguir voando. E num belo dia, ao nos aproximarmos mais travados de um pouso apertado, ou quando forçamos uma curva por estar perto demais do relevo, ela simplesmente pára de voar e estola, numa justificada revolta!
Cuidem-se cuidando de suas asas…
Abs,
LM